É importante lembrar que o Darwinismo propriamente dito caiu já na década de 1980 - especialmente aí ganham força as críticas que vem a derrubar alguns pilares da teoria, como o gradualismo evolutivo -, apesar de ainda ser ensinado descriteriosamente nas escolas. O evolucionismo, ainda assim, está longe de morrer no meio científico.
Também pra quem pensa que o ateísmo é o único que comporta o evolucionismo, e que essa é a única coisa que faz sentido no mundo (se faz), e chama correntes alternativas de inconsistentes, vale saber que a coisa não é bem assim. Um pouco disso vai dar pra se pegar na leitura e talvez no link pra uma segunda postagem, mais antiga - e adiando que provavelmente com um ou outro argumento desatualizado -, que vou pôr lá em baixo, pra quem aguentar o tranco de ler tudo. xP
O texto abaixo não é uma crítica ao darwinismo e nem uma apologia, sendo só uma análise dos primeiros contatos entre ele e a Igreja, no século XIX, acompanhado de uma análise da origem do conceito "fé vs. religião". Uma surpresa pra quem pensa que foi só quebra-pau! Diferente da maioria dos outros artigos, neste eu não vou defender meu ponto de vista. Coisa de acadêmico de história - já que esse foi pra entregar -, encargos do ofício. :P
Mas no mais, é isso! A quem se interessa pelo assunto, bom proveito!
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Darwinismo e religião:
os apoiadores
da teoria na Igreja do século XIX
O darwinismo foi sem dúvida um
movimento de ruptura como poucos e teve grande valor representativo nas
mudanças ideológicas ocorridas no século XIX. Ao contrário do que se pensa,
porém, o grande embate ideológico nem de perto se restringia ao âmbito religioso,
influenciando de alguma forma praticamente toda a ciência e sociedade do
período. Ainda assim, a Igreja não foi una em suas proposições, com
representantes tanto opositores como apoiadores da inovadora teoria, frisadamente
nos meios anglicano e católico, dos quais se tratará no decorrer do artigo.
Em
novembro de 1859 o naturalista Charles Darwin publica a obra intitulada “A
Origem das Espécies”, que se tornaria não apenas um clássico, mas um parâmetro
e um verdadeiro divisor de águas no meio científico. A premissa básica era a da
origem comum entre os seres vivos e da evolução gradativa de todas as formas de
vida tendo por base de funcionamento o processo de seleção natural. Seu
conteúdo questionou a compreensão tradicional de mundo do período em pontos
sensíveis, e seria a aparente mais poderosa arma no famoso enfrentamento entre "fé e ciência", que tomaria força como nunca antes entre estudiosos,
contradizendo todo o recorrente criacionismo literal, pregado pela Igreja - ou parte da - de
então. Não por nada a obra é por muitos vista como o estopim do o nascimento
do ateísmo moderno.
Ainda
que não tenha havido aceitação plena por parte da Igreja, como bem se sabe, a
mesma num primeiro momento não parece ter em unanimidade encontrado fortes
empecilhos ou ameaças diante da nova linha teórica. A Igreja Católica
sabidamente tomou como primeira posição uma recusa, todavia a Igreja Anglicana,
conterrânea do naturalista, parece um exemplo oposto, ainda que logo antes
tivesse com firmeza se posicionado contra a proposta de Lamarck.
A
interpretação do criacionismo de Gênesis como literal seria a grande corrente
opositora entre religiosos. Segundo o Pe. Gregory Tatum, École Biblque, o
enfoque na interpretação literal do criacionismo de Gênesis, que tanto
contrasta com as proposições darwinistas, não tivera tanta vazão na Igreja
Anglicana em virtude de uma proposta da própria reforma, que consistia na
ruptura com específicos traços da dogmática católica. A interpretação literal
da criação, segundo ele, entrava em contrariedade com o ideário conhecido da
própria Igreja cristã primitiva, onde teoricamente se discutiam mais
ensinamentos que literalidades dos textos, realidade que mudaria com a
influência do cristianismo ocidental e seu direcionamento dentro do ambiente
romano. Já antes do século XIX, portanto, cristãos vitorianos consideravam a
não literalidade da linha temporal bíblica, tese reforçada pelas próprias
descobertas de fósseis na primeira metade do século, forte fonte de estudos nos
entremeios científicos anglicanos, que por si só cooperariam para pôr a linha
teórica em cheque. Estes avanços nos estudos de fósseis e rochas levariam os
geólogos do período a proporem a existência prolongada da terra antes mesmo de
Darwin, tendo esta então idade indiscutivelmente maior que a de 6.000 anos,
sugerida por Ussher, que calculara seguindo a genealogia bíblica,
desconsiderando as possíveis lacunas. A fundamentação antes de Darwin é citada
pelo próprio:
“Até
pouco tempo atrás, a maioria dos naturalistas era da opinião de que as espécies
seriam produções imutáveis, criadas separadamente. Esse ponto de vista foi
sustentado por muitos autores. Outros, no entanto, acreditavam que as espécies
sofriam modificações, e que as formas de vida atuais eram os descendentes diretos
de outras formas de vida preexistentes [...]”. (DARWIN, 1859, p.13).
Durante grande
parte do século XIX a ciência foi uma espécie de extensão da igreja, inclusive na
Inglaterra, com clérigos anglicanos ocupando altos postos em universidades de
porte como Oxford e Cambridge. Cientistas anglicanos não apenas não
contradisseram a teoria como foram apoiadores, o que se sustenta no fato de que
a produção científica à qual então tinham acesso já apontava em direção
semelhante. O reverendo anglicano Charles Kingsley ilustra o fato no período
afirmando que a evolução revelara “uma nobre concepção da Divindade”. Os
cristãos vitorianos, como se viu, já nutriam uma concepção de formação da Terra
razoavelmente sofisticada, construindo o campo para que o darwinismo não fosse
repudiado de forma imediata. Mas é inegável que ainda assim o episódio causou
uma ruptura com a visão tradicional de forma bastante saliente. Ainda que já
houvesse tendências e pensadores racionalistas antes de então, notadamente na
Inglaterra e na Alemanha, esse traço do protestantismo que possibilitou a
abertura para esta nova concepção como um movimento distinto tem bases no
século XVIII partindo de Semler, como cita Hurlbut:
“A Reforma estabeleceu o direito de juízo
privado acerca da religião e da Bíblia, independente da autoridade sacerdotal e
da Igreja. Um resultado inevitável aconteceu: enquanto alguns pensadores
aceitaram as idéias antigas da Bíblia como livro sobrenatural, outros começaram
a considerar a razão como autoridade suprema e a defender uma interpretação
racional, não sobrenatural, das Escrituras. Aqueles que seguiram a razão, em
prejuízo do sobrenatural, foram chamados “racionalistas”. Embora o germe do
racionalismo já existisse na Inglaterra e na Alemanha desde o início do século
XVIII, suas atividades como movimento distinto começaram com Johann Semler
(1725-1791), o qual defendia que coisa alguma recebida pela tradição deveria
ser aceita sem ser posta à prova [...]” ( HURLBUT, 2007, p. 207-208)
No
âmbito de influência católica também houve, mesmo que em menor número, homens
como o cardeal John Henry Newman, que apoiavam as novas e polêmicas ideias. Em
famosa citação, declara Newman: “O darwinismo, verdadeiro ou não, não é
necessariamente ateísta. Pelo contrário, pode estar apenas sugerindo uma ideia
mais ampla da providência e sabedoria divinas”.
Entre
os principais argumentos de sustentação da conciliação entre o criacionismo e a
teoria evolucionista de Darwin estava o da atemporalidade de Deus, proposta por
Agostinho, que permitia que a criação ocorresse em milhões de anos, que para
Deus sem problemas poderiam ser como dias. Esta foi a base para o que passaria
a se chamar “evolucionismo teísta”, uma linha de grande vazão até os dias de
hoje, ainda que com alterações em linhas gerais desde o século XIX. Neste caso
apontava-se ao fato de que a visão que originara os escritos de Gênesis
revelava as fases pelas quais passara a criação, e não dias literais. As fases
da criação se equiparariam de forma aceitável com as linhas evolutivas que
então se propunha, abrindo margem à interpretação de que a idade longa da
Terra, bem como a evolução, se faziam então viáveis diante do relato bíblico.
Para os mestres da Igreja, Deus não se relacionaria com a criação como mero
espectador, e nem agiria arbitrariamente, mas conduzia a vida e seus processos.
Se houvesse, portanto, de fato ocorrido a evolução, Deus é quem teria garantido
a perfeição dos processos que conduziram às formas de vida sofisticadas que
hoje conhecemos, garantindo que viessem a se tornar exatamente o que são.
O
maior contraponto ideológico encontrado pelo darwinismo no momento em que este
surge, e sendo este a provável maior base de argumentação dos que inicialmente
se contrapuseram à teoria, partia do teólogo britânico William Paley, que
basicamente comparava a complexidade da criação sustentando a vida com os
mecanismos internos de um relógio, equilibrados e funcionando como um todo com
exatidão, uma vez que a vida seria tão sofisticada e carecida de equilíbrio e
cálculo, que cada criatura deveria ter sido individualmente projetada. No
contexto de revolução Industrial, uma concepção que lograva atenção e
identificação. Uma forma de ver a Deus como um grande mecânico, um projetista
fundamental.
Mas
a verdadeira guerra entre o darwinismo e a religião, o acirrado embate da
famosa temática “fé vs. razão”, claramente não se iniciara com a força que
conhecemos no início do contato com o naturalismo, e carece entender então em
que momento esta se deu. Alega-se que o embate em larga escala teve sua primeira fagulha no Cinturão Bíblico
americano, num debate essencialmente político e moralista, no alvorecer da
década de 1920. A teoria lograva aceitação nos EUA, mas era crescente a
tendência extremista no cristianismo. No Estado de Tennessee não demorou a
vigorar lei proibido o ensino do darwinismo nas escolas, situação onde ocorrera
o famoso caso de John Scopes, professor preso por desacatá-la. Em 1925, em
tribunal na cidade de Dayton, foram organizadas reuniões visando discutir as
conjunturas legais nas quais houve forte embate entre liberais e conservadores;
os primeiros defendendo a liberdade indistinta de ideias, e os oponentes
defendendo a censura a ideias “não bíblicas”. Ficou conhecido este momento como
“O Julgamento do Macaco”, pela ênfase dada às questões naturalistas. Liderando
o processo contra a difusão das ideias darwinistas estava William Jennings
Bryan, um fundamentalista cristão e socialista, que via no darwinismo um dos
motivos da queda da moralidade norte-americana, atacando toda a linha ligada
à teoria mesmo no que transpassasse o darwinismo científico, a exemplo enfático
do “darwinismo social”, que representaria a selvageria do capitalismo no
período. Do lado oposto estava Clarence Darrow, alegando defesa ao darwinismo e
à liberdade de ensino e expressão de ideias, sem distinção, mas atribuindo ao
uso efetivo da seleção pelo mais forte e apto - favorecendo os encaminhamentos do capitalismo de então, atacados por Bryan - uma base social melhor que a
cristã, que não faria essa distinção. Aí iniciaria, portanto, a fase mais
direta da "guerra" cuja presença tanto vemos ainda em nossos dias.
O contexto de Darwin fora menos
inflamado que o do século XX. Vale lembrar que em boa parte da vida foi ele
também cristão. Ainda que se unam os fatores da perda de sua crença
com a proposição de sua teoria, é sabido o momento da morte de Annie, sua filha, como o ponto a partir do qual passara Darwin a negar de fato sua fé. Todavia mostrou ele ao longo da vida evidentes indícios de uma crença persistente em Deus, e um exemplo está em uma carta de sua autoria escrita um ano antes de seu falecimento, em resposta a uma obra que em tese criticaria o evolucionismo por ele proposto, em 1881, na qual redige: "Devo dizer-vos que em vosso livro 'Pretensões da Ciência' expressastes a minha profunda convicção, e mesmo mais eloquentemente do que eu saberia fazê-lo, isto é, que o universo não é e nem pode ser obra do acaso"; bem como outra carta, esta escrita em 1873, na qual consta o trecho: "Posso afirmar-vos que a impossibilidade de considerar este magnífico universo, que contem o nosso 'eu' consciente, como obra do acaso, é para mim o principal argumento em favor da existência de Deus". A incompatibilidade entre o darwinismo e religião, portanto, não representou num primeiro momento o embate que toma a memória popular, aparentemente nem por parte de Darwin.
Ainda
que vejamos hoje o atrito que há entre a teoria e suas linhas decorrentes com os posicionamentos criacionistas, nem sempre foi assim. Mesmo entre religiosos do período, como vimos, surgiram tanto opositores como apoiadores da advinda proposta.
O darwinismo foi um movimento de extrema relevância na ciência e no
pensamento do século XIX, e indubitavelmente forma uma das bases para o que veio
a se fazer hoje a ciência e mesmo a sociedade. É um assunto rico e distante de
se esgotar, carecendo ainda de análises, estudos e da atenção que inegavelmente
sua relevância lhe remete.
Referências
*DARWIN, Charles
– A Origem das Espécies. Coleção A
Obra-Prima de Cada Autor, 2ª edição, São Paulo – SP: Martin Claret, 2004.
*HURLBUT, Jesse
Lyman – História da Igreja Cristã.
São Paulo-SP: Vida Acadêmica, 2007.
*DOWLEY, Tim – Os
Cristãos: Uma História Ilustrada. São Paulo – SP: Martins Fontes, 2009.
*Doc.: BBC London - Did Darwin Kill God, 2009.
*educacao.uol.com.br
*alansemeador.xpg.com.br
É isso aí, gurizada! Abraço! :P